Por vislumbrar violação ao pacto federativo, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo considerou inconstitucional uma lei municipal de Sorocaba que proibia pessoas trans de usar banheiros e vestiários em escolas públicas e particulares de acordo com a identidade de gênero. A decisão se deu por unanimidade.
Segundo a lei, uma mulher trans não poderia usar o banheiro ou vestiário feminino, por exemplo. Os alunos seriam obrigados a usar o banheiro de acordo com o sexo biológico, e não segundo a própria identidade de gênero.
“Forçoso reconhecer que a norma municipal afronta as normas constitucionais e a disciplina complementar existente, configurando vício de inconstitucionalidade formal, invadindo a esfera legislativa privativa da União, desbordando dos limites da competência legislativa suplementar do Município, o que caracteriza usurpação da competência da União”, disse a relatora, desembargadora Cristina Zucchi.
No voto, ela destacou que cabe à União legislar sobre as diretrizes e bases da educação nacional (artigos 22, XXIV, 23 e 24, IX da Constituição Federal), o que incluiu a “proteção dos direitos da personalidade”. Aos municípios cabe, no âmbito da competência legislativa comum e concorrente (artigos 23, V, 24, IX, e 30, I e II), suplementar as normas federais e estaduais, dentro dos limites por estas traçadas.
“Ao vedar o uso de banheiros escolares com base no critério de identidade de gênero, a norma objurgada está restringindo o que a regulamentação existente estabelece a respeito. Se as leis municipais devem estar compatíveis com a legislação federal e estadual, vedada a elas está a inovação, a alteração (pela restrição ou pela ampliação)”, afirmou a relatora.
Para Zucchi, trata-se de uma “situação difícil, que envolve posicionamentos conflitantes, mas que requer uma disciplina regulamentadora ainda inexistente de forma específica e que efetivamente resolva a questão”. Tal lacuna de lei federal não justifica, porém, “a atuação da legislação municipal restringindo a normatividade genérica existente, trazendo inovação”, indo além do que foi estabelecido no âmbito nacional, ferindo, portanto, o pacto federativo.
“A legislação federal ainda não apresenta regulamentação específica da matéria, restando a mesma regulada por ato normativo secundário na hierarquia legislativa, qual seja a Resolução 12, de 16 de janeiro de 2015, do Poder Executivo (Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República), cujos fundamentos justificam-se pela sintonia com a Lei 9.394/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), especificamente os artigos 2º e 3º da referida lei”, concluiu Cristina Zucchi.
A Resolução 12/2015, embora destituída de força de lei, estabelece “parâmetros para a garantia de condições de acesso e permanência de pessoas travestis e transsexuais e todas aquelas que tenham sua identidade de gênero não reconhecida em diferentes espaços sociais nos sistemas e instituições de ensino, formulando orientações quanto ao reconhecimento institucional da identidade de gênero e sua operacionalização”. O artigo 6º do ato normativo também prevê que “deve ser garantido o uso de banheiros, vestiários e demais espaços segregados por gênero, quando houver, de acordo com a identidade de gênero de cada sujeito”.
A ação direta de inconstitucionalidade foi movida pela Procuradoria-Geral de Justiça, que afirmou que a lei impugnada configurava “grave comprometimento à dignidade da pessoa humana e à liberdade de orientação de gênero”. Segundo a PGJ, a restrição imposta pela lei exprimia “discriminação que não se coaduna com os princípios que norteiam a República brasileira e, particularmente, o ambiente educacional, que deve conviver com a pluralidade e com o respeito à diferença”.
Processo 2137220-79.2018.8.26.0000
.
FONTE: ConJur