Há 51 anos, a alemã Edite Bechtel, 80, ao se debruçar pelas largas janelas do apartamento no 7º andar do Edífio Maria Joaquina, no Centro Histórico de Cuiabá, observa as mudanças e transformações dos cuiabanos.
Quando chegou à Capital, a simpática senhora de cabelos brancos e olhos que, de tão azuis, quase chegam a ser transparentes, afirma que podia contar nos dedos os carros que passavam pela região.
O prédio em questão foi o primeiro condomínio vertical a ser construído em Cuiabá. Adentrar no apartamento de Edite é como fazer uma viagem no tempo: os móveis são quase todos da época em que se casou com o primeiro marido, no dia 8 de abril de 1961 - coincidentemente, data em que é comemorado o aniversário da Capital e quando seria inaugurado, sete anos depois, o Edifício Maria Joaquina.
"Uma das poucas coisas que não são daquele tempo, que foi adquirida recentemente, é uma cama que minha filha comprou. Às vezes, ela vem passar uns dias comigo. Um dia o porteiro só avisou que tinha entrega de um móvel, nem estava sabendo", diz, enquanto dá risadas.

Tinham apartamentos vendendo no Maria Joaquina. Quando mudei, em 1968, o prédio ainda não estava completamente pronto e eu morei sozinha durante oito meses. Em 1969 que as pessoas foram pegando as chaves e se mudando. Nesse ano, já estava quase lotado"
Uma geladeira mais moderna também precisou ser colocada no lugar de um modelo da marca Frigidaire, trazida ao Brasil pela General Motors em meados de 1950. Edite falou sobre a troca com pesar, mas disse que foi algo necessário porque a antiga parou de funcionar.
Entre os presentes do primeiro casamento também está um ventilador vermelho da marca General Eletric. Diferente do que se vê hoje em dia, o eletrodoméstico era produzido com ferro. Apesar da longa data, o aparelho parece que acabou de sair de uma loja.
"Cuido muito, tenho muito ciúmes desse ventilador, Hoje em dia, não fazem mais 'coisas' assim, resistentes. Ele venta melhor do que qualquer um desses modernos", afirma.
Mudança para o Brasil
Edite pisou em terras brasileiras, pela primeira vez, quando se mudou da Alemanha para o Rio Grande do Sul, onde se casou. Ela conta que o primeiro marido, que era oito anos mais velho, comprou terras no Brasil, algumas delas em Cuiabá.
Foi então que ele precisou fazer uma viagem para a Capital de Mato Grosso, com o objetivo de resolver burocracias dos terrenos.
"Ele já estava estabilizado financeiramente. Veio à Cuiabá para ver as terras dele, legalizar e resolveu ficar por aqui. Então, ele foi me buscar. Casamos no Sul e logo mudamos para cá", lembra.
Quando chegou em Cuiabá, Edite se assustou. Naquela época, a cidade era pouco desenvolvida, faltavam moradores, carros e ruas.
A alemã e o marido, então, decidiram buscar por alguma forma de investimento. Da procura, nasceu o Hotel Cruzeiro do Sul, que ficava localizado na esquina da Rua Barão de Melgaço. Três anos depois do casamento, Edite teve o primeiro filho e, quatro anos depois, o segundo.
A família morava no próprio hotel, que logo começou a ficar pequeno para as brincadeiras dos pequenos. É nesta parte que a história da simpática senhora de cabelos brancos, que morava em uma cidade na divisa com a Suiça e a França, se cruzou com o primeiro edifício de Cuiabá.
Edite e o marido começaram a procurar um lugar maior para morar com a nova família. Uma das exigências, porém, era de que o lugar fosse perto do hotel deles.
"Tinham apartamentos vendendo no Maria Joaquina. Quando mudei, em 1968, o prédio ainda não estava completamente pronto e eu morei sozinha durante oito meses. Em 1969 que as pessoas foram pegando as chaves e se mudando. Nesse ano, já estava quase lotado", recorda.
O valor pago pelo local, na época, foi de 400 cruzeiros novos. "Era uma fortuna!", exclama a alemã.
Ela explicou que, além do Edifício Maria Joaquina, a Prefeitura de Cuiabá e o Palácio do Comércio eram as únicas construções verticais da Capital.
Edite perdeu o primeiro companheiro, assim como lamentou a morte de quase todas as amigas que costumavam ser parceiras de excursões por cidades brasileiras, além de memoráveis viagens para Buenos Aires, por exemplo.
Após o falecimento do primeiro marido, Edite se casou novamente com um piloto de avião. Um dos filhos seguiu o mesmos passos e, vestido nos trajes da profissão, estampa um dos porta retratos da sala dela.
Atualmente, ela vive sozinha em um apartamento de três quartos do edifício, que tirando o porcelanato colocado na sala de estar, mantém todas as características arquitetônicas da década de 60. Os azulejos azuis no banheiro e outros enfeitados na lavanderia resistiram ao passar dos anos.
Orgulhosa, a alemã mostra cada canto do lar para a reportagem. "Hoje em dia não fazem mais apartamentos assim, minha filha. Espaçosos, arejados e resistentes", fala, enquanto convida a entrar em mais um cômodo.
Naquele dia, apenas uma manifestação que acontecia na Praça Alencastro e os barulhos da empregada que cozinhava o almoço interrompiam as histórias da alemã que se tornou cuiabana.
Coração cuiabano
Até os 16 anos - idade que se mudou para o Brasil, Edite vivia com a família em uma cidade alemã que fazia divisa com a Suiça e a França. Por conta da localização, ela contou que não enfrentava grandes problemas e, por isso, só tem lembranças boas do tempo de criança.
"Meu pai tinha uma fábrica de móveis, mas estava na guerra, então minha mãe que 'tocava' [o negócio]. Não passamos aperto porque tinhámos horta, minha mãe plantava, lá [na Alemanha] as mulheres trabalhavam muito", diz.
Com o passar dos anos, o lado alemão da família de Edite também foi reduzindo. A última vez que ela viajou para o país foi quando a avó faleceu.
"Minha família é muito pequena, meus avós faleceram, meu único tio também já morreu. Minha mãe ficou no Rio Grande do Sul, mas já perdi meus pais e meu único irmão. Agora tenho quatro netas e quatro bisnetos. Duas netas são casadas e duas são noivas, então ganhei mais quatro genros. Minha família está no Brasil", afirma.
Além disso, depois do marido falecer, a alemã abriu outro hotel no Centro Histórico de Cuiabá. O Hotel Samara funciona na região há 40 anos e, atualmente, Edite é responsavel pela administração da hospedaria.
Ela contou que, apesar de gostar muito de dormir, costuma acordar por volta das 6h e, logo depois, vai até o hotel para chegar se está tudo certo.
"Gosto de tudo muito limpo e organizado. Vou cuidar até lá [ao Hotel Samara] de tudo pessoalmente, todos os dias", conta.
Quando questionada sobre o que gosta de fazer durante o dia, Edite pensa um pouco antes de responder: "Trabalhar". A alemã diz que já trabalhou muito durante os 80 anos de vida e que os planos para o futuro envolvem uma aposentadoria tranquila. "Vou descansar", brincou.
"Talvez venda o hotel, porque meus filhos também não têm interesse de cuidar da administração. Em seguida, vou viajar, vou para Uberlândia (MG), onde tenho uma filha, passo uns dia lá. Ainda não sei ao certo, mas vou aproveitar a vida", continua.
Quando retorna do Hotel Samara, por volta das 13h, Edite conta que gosta de ficar em seu quarto e assistir a programação preferida: novelas. "Se deixar eu fico horas assistindo televisão. Gosto muito", fala.
Mudanças no Centro Histórico
Alair Ribeiro/MidiaNews

Edite ainda mantém móveis que ganhou de presente no primeiro casamento em 1968
Quando se mudou para o Edifício Maria Joaquina, na década de 60, a visão que Edite tinha pelas grandes janelas do prédio - que se estendem por todos os cômodos - era diferente da que ela enxerga agora, em 2019. Na época, crianças usavam o "jardim", como ela se refere ao espaço, para brincar e andar de bicicleta.
No centro da Praça Alencastro havia uma espécie de caixa de som, onde as pessoas podiam oferecer músicas umas às outras, segundo ela. Outra cena recorrente na memória dela é o namoro dos casais no casal.
"Agora, no final de semana é um silêncio, não tem mais aquela convivência. Vamos nos acostumando com o tempo que vai passando, hoje tudo está mudado", avalia.
O próprio prédio, que, como foi construído em uma época onde carros não era prioridade, não possui estacionamento. Isso que faz com que os moradores atuais precisem alugar vagas nos arredores do Centro Histórico.
O terraço do edifício, no 15º andar, também não é mais agitado como antigamente. Edite contou que no espaço aconteciam as festas da alta sociedade cuiabana que moravam no prédio.
"Aqui [no Maria Joaquina] é uma relíquia, tinham muitas festas no terraço. Participei de algumas, eram celebrações de casamentos, aniversários e batizados", recorda.
Veja o vídeo: