Nas prateleiras de lojas de brinquedos e ateliês de artesãos especializados, surgem rostos tão reais que chegam a arrepiar. Os bebês reborn — bonecas hiper-realistas pintadas e moldadas para assemelhar-se a recém-nascidos — conquistaram um público crescente no Brasil e no mundo. De mães de primeira viagem que os utilizam para treinar cuidados infantis a colecionadores solitários que encontram neles uma companhia, o fenômeno levanta uma pergunta fundamental: para onde estamos indo como sociedade e como redefinimos, hoje, os laços familiares e afetivos?
Tradição Família x Laços Inventados
Nas famílias tradicionais, o vínculo nasce do convívio cotidiano: o choro que desperta à noite, a primeira papinha, o amor incondicional de pais por filhos. Esses laços se constroem entre fraldas sujas, primeiros passos e tardes de brincadeira. Já o universo dos reborns propõe uma relação diferente — uma afetividade programada, controlada, sem fraldas de verdade ou necessidades fisiológicas. O “cuidado” se resume a trocar roupinhas, alimentar com mamadeira de mentira e estampar sorrisos “maternais” em selfies para as redes sociais.
Valores em Transformação
Diversos profissionais da saúde mental alertam, como no caso de pessoas que lidam com a perda de um filho ou com ansiedade —, os reborns podem de fato trazer conforto. Mas quando se tornam objeto de consumo ou status, são sinais de que uma parte significativa da sociedade está buscando substitutos a experiências emocionais genuínas. Ao valorizar mais o boneco perfeito do que a imperfeição do outro indivíduo, corremos o risco de desumanizar nossas relações.
Na geração passada, ter um bebê significava adaptação caótica: noites em claro, demanda constante, renúncias pessoais. Hoje, a ideia de “ter” um bebê sem esforço pode soar sedutora. Mas esse “bebê” não cresce, não amadurece, e não traz os desafios que nos forçam a sermos pacientes, desprendidos e solidários — virtudes que sempre foram pilares da vida familiar.
Onde Estamos Caminhando?
O avanço da tecnologia e do consumo cria laços mais fluidos e menos compromissados. Se podemos simular uma família com bonecos, até que ponto manter relacionamentos reais passará a ser opcional? Qual o impacto disso na emotividade de crianças que veem nos reborns um brinquedo tão valorizado quanto um smartphone? Será que nossos valores — empatia, sacrifício e amor desinteressado — resistirão a essa mercantilização da afetividade?
A febre dos reborns nos oferece um espelho para encarar a pergunta: estamos prontos para uma era em que o projeto de família pode ser tão customizável quanto um app? Se tudo pode ser simulado, será que ainda valorizaremos os vínculos reais, complexos e imprevisíveis que moldaram nossa sociedade por séculos?
Talvez seja hora de relembrar que a beleza da vida familiar está, justamente, nessas imperfeições — no choro que desafia, na perda de sono que ensina responsabilidade e no crescimento conjunto que fortalece a convivência humana. A febre dos bebês reborn pode ser passageira, mas a reflexão que ela suscita sobre quem somos e para onde vamos é um convite urgente para revisitarmos nossos valores e decidir, de forma consciente, o que realmente queremos perpetuar.
Ana Barros é jornalista em Cuiabá.
